quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Apesar dos limites



No tempo  em que ainda era um simples estudante de medicina, numa universidade  do meio oeste dos Estados Unidos, Marlin nutria a estúpida  preocupação com um mundo cheio de  pessoas aleijadas e doentes sem esperança  de cura.
Por essa razão, era partidário da eutanásia e da eliminação  dos aleijados sem cura. Moço e irreverente, costumava  travar calorosas  discussões  com os  colegas que pensavam de maneira diferente da sua. Aos seus inflamados argumentos, os companheiros respondiam: “mas então você  não vê  que nós  aqui estamos  estudando medicina precisamente para cuidar dos aleijados e dos coxos cegos?” -Os médicos  existem neste mundo para curar os doentes”. Era  sempre a resposta que ele dava. “E se nada podemos fazer  nada em seu beneficio, o melhor para eles é a morte”.
No entanto, uma noite, enquanto prestava serviço interno  no  hospital, no útimo ano  do curso, Marlin foi  chamado para assistir  a  uma paciente  imigrante  alemã,  que morava num bairro  miserável   da cidade. Era o décimo filho que a pobre mulher dava à luz, e o bebê  entrou neste mundo com uma das perninhas mais  curta do que a outra. Antes de fazer com que a criança pudesse respirar por si mesma, acudiu-lhe um pensamento: “Que despropósito! Este pequeno vai  passar a vida inteira arrastando  esta pobre perna. Na escola será  vítima de chacota dos outros meninos, que o chamarão’manco’.
Para  que hei de obrigá-lo  a viver? O mundo nunca dará  pela falta dele.”
Mas, apesar de seus pensamentos, o garoto levou a melhor. O jovem médico  não conseguiu deixar  de insuflar o ar da vida naqueles  pequenos  pulmões. Pondo-os a funcionar. Cumprindo o dever, o interno agarrou  a maleta do oficio e foi embora censurando o próprio  procedimento. Não posso compreender  por que fiz isto! “Como se não houvesse filhos demais naquele antro  de miséria. Não entendo porque deixei viver mais aquele, e ainda por cima  estropiado.”
Os anos correram. O  Dr. Marlim consagrou-se como médico e conquistou vasta clientela. As idéias  que sustentava  na juventude mudaram. Agora ele se dedicava a salvar e conservar vidas. Um dia, seu filho único e a esposa morreram  num acidente de  automóvel, e Marlim tomou a  filha do casal para criar. Amava com todas as forças  a netinha “Barbara”. No verão em que completou dez anos, a menina acordou certa manhã, queixando-se de torcicolo e de dores nas pernas e nos braços. De começo  pensou-se que fosse poliomielite, a temível  paralisia infantil, mas depois verificou- se que  era uma raríssima  infecção causada por um vírus pouco conhecido  que também causava paralisia.  O Dr. Marlim  reuniu vários neurologistas e todos foram unânimes  em afirmar que não  se conhecia remédio nem tratamento algum  para aquela enfermidade. Em todo  caso, existe um médico no Oeste, que havia  escrito recentemente sobre o êxito que tem obtido  em casos como este, observou um dos neurologistas.  O Dr. Marlim  não teve duvidas. Tomou  a neta e se dirigiu para o  hospital indicado. Quando  ficou frente a frente com o médico, único capaz de salvar a  neta tão querida, o  Dr. Marlim observou que o jovem colega coxeava acentuadamente.
-Esta perna curta faz de  mim igual aos meus doentes, relatou o Dr. T. J. Miller, ao   notar o olhar do Dr. Marlim. 
-Consinto de que as crianças me  chamem de “manco”,  e elas adoram isso.
-De fato prefiro esse nome ao meu real, que é Tadeu, que sempre me pareceu um tanto  pomposo e ridículo! Como a tantos outros meninos, deram- me o nome do moço interno que uma noite me ajudou a vir ao mundo...
O Dr.  Marlim  empalideceu-se e engoliu a seco.  Por alguns minutos lembrou- se  dos pensamentos que lhe ocorreram  naquela noite distante:  ” O mundo nunca dará pela falta dele”.
Estendeu comovidamente a mão ao jovem colega, o  coxinho devotado, graças a quem a neta iria poder andar outra vez, e pensou consigo mesmo:  “Em todo  caso, sempre é melhor ser coxo do que cego, como eu fui, por muito tempo”.
Pensou o Dr. Marlim.


(Fonte Revista Seleções de 1948  Adaptado    por  M.P.S )

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